domingo, 28 de março de 2010

Quando eu percebi era tarde demais (II)

Acordei completamente molhado de suor. Lisa batia no meu rosto, tentando me despertar. Começaria mais um dia. Tinha acabado mais um pesadelo dos inúmeros que me rondavam desde que Ana, minha filha, havia descoberto a leucemia. Minha esposa me abraçou. Pediu-me calma. Mais uma segunda-feira havia chegado e minha filhinha teria mais um dia de tratamento pela frente. Aparentemente estava tudo sob controle. Meu coração sabia que não. Lisa sabia que não.

Aos 16 anos, Aninha era uma dessas meninas ativíssimas. Escola, cursos, academia, namorado. Não parava em casa. Festas no fim de semana, viagens nas férias... quanta felicidade! Filha única. Eu não me conformava com a doença dela. Tudo começou com uma anemia, depois ela foi ficando mais debilitada, chegou a desmaiar, até descobrirmos a verdadeira razão de tamanha fraqueza. Apenas 16 anos! Não era justo.

Tomei banho, troquei de roupa e fui para sala esperar minhas mulheres. Pensei um pouco no meu escritório. Deixar todos os casos que eu vinha acompanhando na mão dos meus sócios me perturbava. Não confiava em todo mundo. Ainda mais com aquela audiência importante que eu teria no dia seguinte. Elas chegaram. Ana, apesar dos dois meses da doença, ainda seguia muito bem. Muito da fragilidade dela ainda era força da minha consciência protetora.

No hospital, já estávamos em casa. Era uma rotina que se transformava em hábito. Erámos eu, Lisa e Silas, namorado de Ana, sempre a acompanhando. O menino de 17 anos me surpreendia pelo senso de proteção e companheirismo. Nunca fui de dar muito valor a esses namoros de adolescêntes, mas esse rapaz parecia realmente a amar. Estavam juntos há pouco mais de um ano e eu, que detestava aquele brinco na orelha, agora passava a dar valor a fatos mais importantes, como ao sentimento.

Ali, dentre as paredes brancas que me rodeavam a cada vão, passei a questionar a efemeridade da vida. As minhas ações, meus pensamentos tão próprios e intransigentes. Passei a refletir minhas atitudes. Pensei novamente em algo que não vivi. Era um exemplo de vida que não vinha mais dos outros. Agora era tudo saindo da minha família. Quem daria o exemplo era eu. E a gente nunca acha que uma hora esse momento será o nosso. Como nas palestras em que todos vão dar uma opinião boba sobre o que entendeu, uma hora você vai ter que demosntrar algo. A hora chegou.

(...)

Estávamos no sexto mês de tratamento. A minha filha estava perdendo os cabelos com o novo tipo de quimioterapia. Enquanto Aninha parecia passar tão bem por todas essas etapas, quem estava se rendendo à guerra era eu. Mais parecia que a doença era em mim. Eu estava ficando doente e Lisa já percebera isso. Maldita doença.

Continua...

sábado, 20 de março de 2010

Minha força estava à prova (I)

Peguei a chave do meu carro e não pensei duas vezes antes de sair. Era de madrugada. Por volta das 3h. Saí sem destino. Nunca tinha feito isso antes em toda a minha vida. Na rua, era como se cada rara pessoa que olhasse para mim, dentro do carro, soubesse exatamente o que estava passando na minha cabeça. Talvez, na minha vida. Eu nunca estivera tão triste assim nos últimos trinta anos. Tudo estava indo tão bem. De repente. Foi tudo tão rápido. Começava ali algo que se arrastaria por longos 11 meses.

Estacionei em uma praça, que fica exatamente em frente ao meu trabalho. Desci. Sentei-me no banco em que a levava para assistir ao mágico que fazia apresentações bem ali. Fiquei parado por cerca de cinco minutos. Pensei no meu casamento. Nos meus pais que já se foram, na minha família. Pensei em como tudo era tão fácil e eu não sabia. Como eu poderia ter dado um rumo diferente. Feito de outra forma. Acho que naquele momento, eu estava arrependido. Besteira. Algo sem nexo.

Estava com a cabeça fervendo. Havia discutido com a minha esposa. Não podia ter gritado com ela justo naquele instante. Voltei para casa. Fui voando com o carro. Estacionei torto como a minha filha. Subi as escadas. Pedi para conversar. Ela apenas consentiu com a cabeça. Só eu sabia o quanto eu a amava. Em quanto eu sofreria se ela me deixasse. Erámos eu e ela há três décadas. Nunca nada igual havia acontecido.

A minha filha estava doente. A nossa filha estava doente. Nem todo dinheiro do mundo seria capaz de me fazer privar de algo que, certamente, viria. De toda dor, todo sofrimento. Porém, também, de toda superação, vitórias diárias, aprendizados sem iguais. Enfim, Lisa resolveu me deixar falar. Conversamos. Ela estava irredutível. Eram quase 5h, o sol já estava saindo. E a nossa conversa, apenas começando... A batalha estava começando. Era realmente o começo. Muito ainda aconteceria.

Acompanhe nos próximos capítulos...